- Author, Giulia Granchi
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
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Juntas há 13 anos, a bibliotecária Aline Tavella e sua esposa Camila Souza, jornalista, já planejavam a chegada de um bebê há algum tempo.
Em 2022, quando Aline ficou grávida por meio de reprodução assistida, Camila pensou em passar por um tratamento médico para gerar leite e assim amamentar a criança mesmo sem ter passado pela gestação — uma forma de dividir essa função com a esposa.
“Eu sabia da possibilidade porque uma amiga tinha tentado. No caso dela, não deu certo, mas eu pensei: ‘se existe a possibilidade, por que não tentar?’ Eu estava motivada pela ideia de partilhar as tarefas da maternidade, que podem ser pesadas quando não são divididas.”
Camila se consultou com profissionais que a ajudaram na jornada e explicaram que provavelmente ela teria menos leite que a mãe gestante — mas que ainda poderia contribuir para a alimentação do bebê, e que seu leite teria tanta qualidade quanto o de sua parceira.
“Comecei sem muita expectativa, mas a indução deu muito certo para mim. As primeiras gotas de leite apareceram nove dias depois do início do protocolo — algo que eu sei que não acontece com todos que tentam”, descreve Camila.
O caso dela, segundo as especialistas da área da saúde consultadas pela BBC News Brasil, é, sim, um pouco mais raro — e deve ser considerado um sucesso.
Para ela, a produção de leite foi tão intensa que resultou em doações para bancos de leite, que fazem estoques para bebês prematuros ou que por algum motivo não podem ser amamentados diretamente por suas mães.
“Ainda faltavam três meses para o nascimento do nosso filho, então quis fazer um bom uso daquele leite. No pico da produção cheguei a doar um litro em uma semana”, conta.
Como é feita a indução do aleitamento
Durante a gravidez, os níveis dos hormônios estrogênio e progesterona ficam elevados para manter a gestação viável e inibir a produção de leite antes da chegada do bebê.
No momento do parto, a placenta — principal fonte desses hormônios — é expelida, e a prolactina, o hormônio responsável por estimular a produção do leite, passa a ter o caminho livre para exercer sua função no corpo.
Seja para mães em dupla maternidade ou para quem adota uma criança, conseguir a lactação induzida, ou seja, sem passar pela gestação, consiste em imitar o mesmo processo biológico que ocorre em uma pessoa grávida.
Se a pessoa tiver vários meses para se preparar, o médico pode prescrever terapia hormonal, com estrogênio e progesterona, para mimetizar os efeitos da gravidez, acompanhada de algum medicamento com galactagogo – uma substância que promove a lactação.
A mais comumente usada é a domperidona, presente em remédios para enjoo como o plasil.
Essa droga, embora não seja aprovada pela Anvisa como um remédio para indução da lactação, tem um efeito “off label”, ou seja, além da sua finalidade principal, que costuma funcionar bem para esse fim.
Por questões de saúde, algumas pessoas não podem fazer uso de hormônios.
Os grupos contraindicados envolvem pessoas que tiveram trombose venosa profunda, doença cardíaca, hipertensão arterial não controlada, histórico de acidente vascular cerebral, câncer de mama ou outros tipos de câncer sensíveis a hormônios.
Mas a parte mais essencial do processo, a sucção, independe de remédios, então mesmo sem hormônios é possível ter um bom resultado, diz a pediatra Honorina de Almeida, especialista em aleitamento materno pela International Board Certified Lactation Consultant (IBCLC).
“A bomba elétrica é o método mais eficaz para simular a sucção que o bebê faz na mama”, explica ela, que é sócia-fundadora da Casa Curumim, em São Paulo, onde há o ambulatório Mame+, que oferece consultoria e empréstimo de bombinhas e outros materiais de forma gratuita.
A sucção – do bebê ou simulada – é necessária para liberar prolactina, que atua na produção de leite, e a ocitocina, o ‘hormônio do amor’, que causa contrações nos ductos mamários fazendo com que o leite seja empurrado para os mamilos.
Esses dois hormônios fazem parte de um complexo processo hormonal que é desencadeado a partir da hipófise, uma pequena glândula localizada na base do cérebro, logo abaixo do hipotálamo, que recebe a informação de que a produção do leite é necessária.
“É importante mencionar que a quantidade de leite produzida por essa mãe pode não ser a mesma que a da mãe biológica, pois esta passou pelo processo de maturação mamária durante a gestação”, lembra Renata Iak, enfermeira obstetra e consultora de aleitamento materno.
No caso de Camila e Aline, mães do Nicola, que hoje tem quatro meses, o leite de Camila, mãe não-gestante, foi suficiente e necessário, já que sua esposa Aline produziu uma pequena quantidade após ter complicações no parto.
Mas, para a maioria dos casais, explica Iak, há uma diferença importante. “Para compensar, pode ser necessário usar um método chamado ‘translactação’, em que um tubo com leite materno é colocado na mama da mãe que não gestou. Enquanto o bebê suga o bico, estimula a mama e o cérebro entende o recado para produzir mais leite.”
A enfermeira obstetra explica que, quando o processo é realizado com acompanhamento, não há risco.
“Esse duplo aleitamento não pode ser considerado amamentação cruzada porque a pessoa não gestante também vai fazer exames para garantir que está em boa saúde e que não coloca o bebê em risco.”
Pessoas transgênero e não binárias também podem induzir o aleitamento
No caso de homens transexuais, eles têm a capacidade de amamentar, desde que não tenham passado por um processo de remoção completa da glândula mamária, comum quando há cirurgias para a harmonização do tórax, explica a médica Honoria de Almeida.
“Muitas vezes, parte da glândula mamária é preservada para construir o tórax masculino. Dependendo da quantidade de tecido mamário restante, um homem trans pode produzir uma maior ou menor quantidade de leite. Além disso, deve-se avaliar o uso de hormônios masculinos, já que a testosterona pode afetar a capacidade de engravidar.”
A especialista aponta que ao considerar a indução da lactação em homens trans, é fundamental avaliar não apenas as questões físicas, como a presença de tecido mamário, mas também os desejos individuais de cada pessoa.
“Embora a amamentação natural seja valorizada e muito importante, não são todos os homens trans como um bebê recém-nascido que desejam amamentar. A decisão pode ser influenciada por diversos fatores, incluindo a necessidade de uma redução ou suspensão dos hormônios masculinos, o que aumenta o risco de disforia de gênero [o sofrimento que pessoas transgênero podem experimentar pela discordância entre sua identidade de gênero e o sexo designado ao nascimento].”
Em relação às mulheres trans, alguém cujo sexo designado ao nascimento foi masculino, mas cuja identidade de gênero é feminina, a amamentação pode ser um processo um pouco mais desafiador, mas também é viável.
Normalmente, a pessoa recebe hormônios femininos como parte do processo de transição, o que leva ao desenvolvimento das mamas.
“Quanto mais tempo ela passa em processo de feminização [hormonioterapia], mais desenvolvidas suas mamas ficarão. O desenvolvimento das mamas é um processo gradual que leva tempo, então, após alguns meses de feminização, as mamas podem não estar completamente desenvolvidas. Em contrapartida, se anos já se passaram, muitas mulheres trans conseguem desenvolver mamas completamente funcionais”, explica a médica.
Jennifer*, uma pessoa não-binária que se considera dentro do espectro transexual, começou seu processo de hormonização para transicionar ao feminino no mesmo mês que descobriu que sua companheira estava grávida.
“Quando comecei o tratamento para gerar leite, não sabia se ia dar certo, porque minhas glândulas mamárias ainda estavam começando a se desenvolver e minha companheira já estava com seis meses de gestação – era um tempo curto para se preparar.”
Em alguns casos, como o de Jennifer, além do uso de medicamentos lactogogos, para permitir a amamentação, pode ser necessário aumentar temporariamente a dose dos hormônios femininos que a pessoa em transição está tomando.
“Isso é feito para mimetizar um pouco o aumento dos hormônios durante a gravidez, como ocorre em mulheres cisgênero”, diz Almeida.
Jennifer, embora tenha produzido menos leite que sua parceira, teve sucesso no processo.
“A amamentação não é o único jeito de criar vínculo e de dividir as tarefas de cuidado de um bebê. Mas na minha família acabou dando muito certo: minha parceira já vinha amamentando há 10 anos por já ter outros três filhos, e eu, que nem considerava ter um bebe, pode ter a experiência incrível da sensação de estar alimentando minha cria.”
Qualidade do leite
A qualidade do leite de quem não gestou é igualmente boa nutricionalmente.
“O mamilo, a parte mais externa da mama humana, funciona como um ‘auditor’ sensorial durante o ato de amamentar. Ele avalia as características da saliva do bebê e envia uma mensagem ao corpo de quem está produzindo o leite sobre o que a criança precisa. É impressionante como o corpo é capaz de personalizar a produção de leite em tempo real”, diz Renata Iak.
Recentemente, um estudo publicado no Journal of Human Lactation mostrou que o leite humano produzido por mulheres transexuais não gestacionais e pais não binários em terapia hormonal de afirmação de gênero baseada em estrogênio é nutricionalmente rico e adequado para alimentar recém-nascidos.
De acordo com a médica que publicou o estudo, Amy K. Weimer, da Universidade da Califórnia, nos EUA, para algumas pessoas, “a capacidade de nutrir os seus bebês através da produção do seu próprio leite também pode ser uma experiência profundamente de afirmação de gênero.”
*O nome da entrevistada foi trocado a seu pedido