- Marcia Carmo
- Para a BBC Brasil, em Buenos Aires
O ativista de direitos humanos argentino Adolfo Perez Esquivel, de 82 anos, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1980, disse que foi “salvo duas vezes” por dom Paulo Evaristo Arns durante a ditadura no Brasil.
Em entrevista à BBC Brasil em Buenos Aires, Esquivel disse que foi preso na primeira vez por militares em São Paulo em 1975, e na segunda vez em 1981.
“Em 1975, foi muito difícil, porque eles colocaram um capuz na minha cabeça, uma gravação de gritos de pessoas sendo torturadas e levantavam um pouco o capuz somente para que eu pudesse identificar latino-americanos que eles perseguiam.”
Segundo ele, os militares queriam que ele “denunciasse” outros opositores ao regime no Brasil. “Eu disse que não conhecia ninguém”.
Perez Esquivel afirmou ainda que três militares o interrogaram e não pode ver seus rostos. “Eram três interrogadores – um muito duro que dizia que iam me matar, que iam me torturar, outro que dizia que era conveniente que eu falasse e outro que queria se fazer de meu amigo, que estava ali para me ajudar”, afirmou.
No dia seguinte à prisão, o então arcebispo de São Paulo dom Paulo Evaristo Arns, conseguiu tirá-lo do local. “O cardeal me salvou duas vezes”, disse o Prêmio Nobel durante a entrevista realizada na sede da ONG Serviço Paz e Justiça (Serjap) que dirige na Argentina.
Segundo Esquivel, Arns reuniu outros religiosos e defensores de direitos humanos e organizou uma manifestação na porta da delegacia, que não recordou onde ficava, assim que soube da sua detenção.
“Dom Paulo, certamente, falou com autoridades do Brasil para que eu fosse liberado. Mas não sei as gestões exatas que ele fez. O que sei é que ele não perdeu tempo em organizar uma manifestação na porta da delegacia para me salvar. E me salvou”, disse.
Medo
Quando perguntado se tinha sentido medo de morrer na prisão durante a ditadura no Brasil, ele respondeu: “Daquela vez sim, foi mesmo preocupante”.
Ele contou que foi preso no aeroporto em São Paulo, e que estava com o advogado Mario Carvalho de Jesus, da Frente Nacional do Trabalho, e com a austríaca Hildegard Goss-Mayr, atual presidente honorária do Movimento Internacional de Reconciliação e integrante do Serpaj, que mora em Viena.
“Nós três tínhamos viajado para um encontro com dom Paulo, mas fomos presos antes. Depois sim, nos encontramos com ele, porque ele atuou para me liberar”, afirmou.
O Prêmio Nobel recordou que sua prisão ocorreu no mesmo ano em que dom Paulo condenou a prisão e morte do jornalista Wladimir Herzog, assassinado no DOI-CODI, em São Paulo. “Dom Paulo convocou os religiosos contra a morte de Herzog que depois se soube foi mesmo assassinado”, disse.
Esquivel foi preso em outras ocasiões no Equador e na Argentina, onde foi torturado, como recordou. “Eu sou um sobrevivente dessas tragédias que vivemos na América Latina”, disse.
Anos mais tarde, em 1981, ele foi preso após criticar a anistia no Brasil.
“Eu falei na OAB do Rio de Janeiro e foram atrás de mim no aeroporto. Mas eu tinha mudado de voo para viajar com Leonardo Boff para São Paulo. Ainda assim me pegaram”, disse.
Em São Paulo, quando chegava para dar uma palestra no colégio Sion, contou, onde realizaria um discurso com outros religiosos, incluindo dom Paulo Evaristo Arns, ele foi preso novamente.
“Me levaram para uma delegacia e dom Paulo reuniu várias pessoas em um protesto no local e graças a isso e a ele, novamente, me liberaram”, disse.
Visita na prisão
Segundo Perez Esquivel, o então senador (Jarbas) Passarinho teria lhe visitado na prisão. “O senador Passarinho justificou porque a anistia era importante, dizendo que sem ela não seria possível construir uma democracia. E que as Forças Armadas tinham colocado ordem no caos. Discurso que achei típico de ditadores”, afirmou.
E continuou: “Por esse motivo, dom Paulo costumava dizer que a democracia no Brasil só deixava passar um passarinho.”
Na OAB, recordou, ele afirmou que “as Forças Armadas não podiam ser anistiadas pelos crimes da ditadura”.
Na ocasião, ele já era Prêmio Nobel da Paz, que recebeu em 1980 pela defesa dos direitos humanos na América Latina. “A minha segunda prisão no Brasil foi quase uma questão diplomática”, disse.
Ele considera “importante” a realização de comissões da verdade no Brasil e da integração entre os países da região na busca de informações sobre o que aconteceu no período ditatorial.
Em janeiro, Brasil, Argentina e Uruguai assinaram um acordo, no âmbito da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), para compartilhar documentos sobre as ditaduras nos três países.
Esquivel ressalvou, porém, que acha que as operações conjuntas contra opositores não se limitaram aos países do Cone Sul, onde a chamada ‘operação Condor’ significou ações conjuntas dos governos na busca dos que se opunham ao regime militar e foram entregues aos outros países ou mesmo torturados nos países vizinhos.
“Eu não chamo de ‘operação Condor’, eu digo que era a internacional do terror.” Segundo ele, essa operação era “um monstro com muitos tentáculos”.
Ele citou alguns casos de autoridades latino-americanas mortas em outros países, como o ex-ministro da Defesa do governo do presidente socialista Salvador Allende, do Chile, Orlando Letelier, morto com uma bomba colocada em seu carro em Washington por agentes da polícia do regime de Augusto Pinochet.
Ele afirmou ainda que a prisão, em 1976, com outros dezessete bispos latino-americanos e quatro americanos, no Equador, também “fazia parte da operação Condor”.
“De jeito nenhum a operação se limitou ao Cone Sul”, reiterou.
Na sua opinião, a Argentina está à frente do Brasil na investigação sobre os crimes da ditadura porque no governo do ex-presidente Raul Alfonsín, na redemocratização, a partir de 1983, os militares foram levados a julgamento.
Anos mais tarde, os governos de Alfonsín e de seu sucessor Carlos Menem, lançaram as leis de Obediência Devida e Ponto Final, definidas como anistia. As leis foram derrubadas no governo do ex-presidente Nestor Kirchner, que governou entre 2003 e 2007 e morreu em 2010.
“Talvez, a Argentina, do ponto de vista jurídico, tenha sido o país que mais avançou (nesta questão).” Perez Esquivel defendeu que os crimes da ditadura sejam investigados para que “todas as gerações saibam o que aconteceu”.
“Algo importante que o brasileiro deve ter é a busca da memória. Não é apenas buscar o passado. A memória deve iluminar o presente e ser base para as gerações futuras”, disse.
Ele afirmou que a anistia “significa impunidade” e “impede a construção da democracia”. “No Brasil lamentavelmente até agora impera a impunidade, com essa lei de anistia”, disse.
Ele cpomplementa que “para o direito internacional os crimes de lesa-humanidade jamais prescrevem”. “Esperamos que eles não aconteçam nunca mais. Mas também por isso é importante saber o que aconteceu no Brasil e em toda a região, em todo o mundo”, disse.