- Author, Mariana Alvim
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
Enquanto parlamentares e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) participam no Brasil de um cabo de guerra sobre quais são as funções e os limites do poder Legislativo e a mais alta corte do Judiciário, outros países estão testemunhando também esse tenso “jogo” entre poderes.
México, El Salvador, Mali e Polônia são alguns dos países em que essa tensão emergiu nos últimos anos em menor ou maior medida — desde projetos partindo do Executivo ou do Legislativo para limitar as decisões de supremas cortes ou cortes constitucionais até ações que efetivamente tiraram juízes de seus mandatos e mudaram a composição dos tribunais (confira mais detalhes sobre esses países abaixo).
Há também o caso de Israel, onde, até a véspera dos ataques do grupo palestino Hamas em 7 de outubro e a decorrente retaliação israelense, uma reforma no Judiciário proposta pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu estava causando uma ebulição doméstica.
O pesquisador americano Tom Ginsburg, professor da Universidade de Chicago, tem como trabalho acompanhar a situação do Judiciário ao redor do planeta: ele é especializado em direito internacional e é codiretor do projeto Comparative Constitutions, dedicado a reunir informações das constituições pelo mundo.
Quando perguntado se as altas cortes estão atualmente mais vulneráveis à pressão política, Ginsburg responde: “Acho que sim. E é uma tendência ruim”.
“Estamos vendo em muitos países políticos tentando controlar os membros [das altas cortes]. Isso é perigoso, porque se tivermos pessoas muito ligadas à política, provavelmente elas não serão os melhores juízes, tecnicamente”, aponta Ginsburg, em entrevista à BBC News Brasil por videoconferência.
“Eu não gosto dessa tendência. Ao mesmo tempo, não acho que os juízes devem sair de sua esfera. Eles devem respeitar o que a lei exige e não impor as suas preferências pessoais”, diz o pesquisador, dedicado também à ciência política.
Ginsburg tem doutorado em Jurisprudência e Políticas Sociais pela Universidade da Califórnia em Berkeley e é autor de vários livros, como Democracies and International Law (2021) e How to save a Constitutional Democracy (2018).
O pesquisador já esteve no Brasil e, ao conversar com a BBC, mostrou que estava antenado com a situação do país.
Por aqui, o mais recente capítulo da tensão entre a política e o STF é protagonizado por parlamentares — sucedendo anos de ataques do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) à corte.
Há vários projetos tramitando na Câmara e no Senado que propõem medidas como a anulação de decisões do STF pelo Legislativo, a limitação do tempo de mandato de ministros do STF e de decisões individuais (monocráticas).
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), indicou a colegas que deve ser votada no plenário em novembro uma proposta de emenda constitucional (PEC) que proíbe decisões monocráticas de suspenderem leis ou atos do Executivo ou do Legislativo federal. A discussão sobre a PEC está prevista para começar nessa terça-feira (24/10).
Pacheco tem liderado no Congresso a defesa de mudanças no STF — ela já se manifestou favoravelmente à limitação do tempo de mandato dos ministros e ao aumento da idade mínima para se entrar no STF.
Durante um evento na França, Pacheco afirmou à CNN Brasil no sábado (14/10) que “não há crise” entre poderes, apenas uma “busca de convergências” por mudanças.
“O Legislativo é formado por 594 parlamentares votados diretamente pelo povo. Então, a essência do que é a vontade popular — e que todo poder emana do povo é uma premissa que nós temos que considerar —, ela é do Legislativo. Portanto, as grandes definições nacionais, para onde o Brasil deve se encaminhar, é um papel muito genuíno do poder Legislativo”, afirmou Pacheco.
“Nós não deixamos de legislar. Quando há algum tipo de opção de não se deliberar sobre determinado tema e fazer prevalecer a lei atual, essa também é uma forma de posição política do Congresso.”
O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, deu uma entrevista coletiva em 4 de outubro sobre as tentativas de mudanças e afirmou ver “com muita ressalva” projetos que visam reverter decisões da corte.
O ministro defendeu que a questão dos mandatos já foi bastante discutida na preparação da Constituição de 1988 — em que ficou decidida que os ministros do STF teriam cargo vitalício, embora desde 2015, haja aposentadoria compulsória aos 75 anos.
“Considerando uma instituição que vem funcionando bem, eu não vejo muita razão para se procurar mexer na composição e no funcionamento do Supremo. Mas o debate público no Congresso é legítimo e nós participamos também desse debate público”, afirmou Barroso.
Independência, mas também fiscalização
Tom Ginsburg destaca que, após um ciclo de “judicialização da política”, o mundo está vivendo agora o ciclo da “politização da Justiça”.
“Na década de 1990, houve uma espécie de vitória da democracia liberal, e parte disso inclui o empoderamento dos tribunais. Havia um sentimento de que os juízes, em virtude da sua disciplina profissional, eram necessários para proteger os fundamentos da democracia, para proteger os direitos e para tomar decisões importantes sobre a constitucionalidade.”
“Como resultado dessa época, vimos os tribunais de muitos países expandirem o seu papel na sociedade, e por vezes chamamos isso de judicialização da política: coisas que normalmente eram resolvidas na política, pelo povo, agora estavam nos tribunais.”
“A situação em que estamos agora é: estamos vendo em muitos países o que eu chamaria de politização da Justiça. As forças políticas não estão necessariamente satisfeitas com algumas das decisões tomadas pelos tribunais e querem mais controle.”
Questionado se a politização da Justiça é algo bom ou ruim, Ginsburg brinca: “Depende do quanto você gosta das decisões que os tribunais estão tomando.”
Depois, responde mais seriamente.
“A politização do Judiciário é algo natural. Não deveríamos olhar para ela como se fosse de todo ruim. É uma reação natural a juízes tomando grandes decisões. Críticas a decisões, é disso que é feita a democracia, certo? É assim que funciona a democracia.”
“O problema nos nossos tempos é que a negociação política fracassou em muitas sociedades em uma era polarizada. Temos sociedades muito divididas. O Brasil está assim, o Estados Unidos estão asssim.”
O pesquisador usa como exemplo o frequente apelo de partidos à Justiça para contestar decisões do Executivo ou do Legislativo com as quais não concordam — algo frequente no Brasil e, segundo Ginsburg, também em outros países.
“Se a competição é polarizada e intensa, os partidos vão buscar ter qualquer vantagem que puderem na instituição que for”, diz.
“Só de se ter mais um fórum, quem perde na esfera política comum sempre pode ir ao tribunal. Isso coloca pressão sobre os tribunais porque agora eles têm muito mais decisões a tomar. Tornou-se um trabalho muito mais difícil.”
Ginsburg aponta para um outro fator complicador na combinação de elementos de tensão entre poderes: uma certa impotência do Legislativo nas democracias contemporâneas.
“Vimos nos últimos anos um grande crescimento do poder Executivo. O Estado é muito maior do que já foi. Isso dá ao Executivo muito poder para interferir na vida das pessoas.”
“Por outro lado, o Legislativo ficou bem mais fraco. As formas de governar modernas se tornaram muito complicadas para que eles [parlamentares] tomem decisões. Então você tem muito Executivo, e poucas políticas públicas vindo do Legislativo.”
Mas o professor da Universidade de Chicago reconhece que tentativas — às vezes ameaçadoras à democracia — de controlar as altas cortes podem vir tanto do Legislativo quanto do próprio Executivo.
“O mais preocupante é uma situação como a da Venezuela, onde você tem um partido forte controlando tudo”, aponta, destacando também que esforços prejudiciais contra as cortes podem partir tanto de políticos de esquerda quanto de direita.
“Não acredito que qualquer lado político tenha o monopólio de governos ruins, do populismo e de valores antidemocráticos.”
“No meu país, temos um problema de verdade agora, em que a Suprema Corte — não em todos os casos, mas em muitos casos — parece estar impondo suas visões políticas particulares.”
“Nem todos os países são assim, mas nos Estados Unidos é bastante claro que o partido do presidente que nomeia [um juiz da Suprema Corte] é muito importante para decisões em casos de alto impacto, e não para casos comuns.”
“Mas não devemos simplesmente presumir que os juízes só votarão ao encontro do presidente que os nomeou. Temos muitos exemplos de juízes que mudaram [de posição], e é isso que chamamos de questão empírica. Você tem que analisar os dados.”
“Todos falam da independência da Justiça, mas também há o outro lado, que é a fiscalização do Judiciário.”
“Alguns tribunais estão se excedendo, inserindo suas próprias [vontades] políticas.”
Para Ginsburg, há tentativas de mudanças do Judiciário que partem de um “bom espírito” democrático e são bem-vindas, enquanto outras atendem a projetos de poder particulares de políticos e partidos.
O pesquisador cita como um bom exemplo na conciliação entre política e Judiciário o chamado modelo de Commonwealth — grupo de países com origens no Império Britânico.
“Vemos isso no Canadá, na Nova Zelândia e no Reino Unido. Você tem essa ideia de que a corte pode tomar uma decisão e se o Legislativo realmente não gostar dela, pode derrubar a decisão.”
“Vários acadêmicos realmente gostam desse modelo, porque na maior parte das vezes, a decisão da corte vai prevalecer. Mas se for uma decisão muito maluca, ela pode ser derrubada.”
“Eu não estou dizendo que esse é um bom modelo para todos os casos — eu não iria querer isso para ao meu país, porque eu não confio no nosso Congresso. Mas esse tipo de iniciativa, em que você tem um diálogo entre as cortes e outros poderes, é bom.”
Ainda sobre boas iniciativas para fiscalizar o judiciário, Ginsburg menciona a importância de “rígidas normas éticas” para membros da corte e o predomínio de decisões coletivas (colegiadas).
“Acho também que a possibilidade de apelar para cortes internacionais é boa. Se o tribunal decidir algo realmente negativo para um indivíduo, essa decisão pode estar sujeita a um exame mais minucioso a nível internacional. Esse é um tipo de mecanismo de controle dos tribunais. O Brasil tem isso na Corte Interamericana de Direitos Humanos.”
“E é isso que vemos na União Europeia. É por isso que Orbán [Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria] e Kaczynski [Jaroslaw Kaczynski, líder do partido PiS, que comanda a Polônia desde 2015] estão limitados na sua capacidade de abusar totalmente dos direitos dos cidadãos, porque estão inseridos na Convenção Europeia de Direitos Humanos.”
Países que passaram recentemente ou estão passando por tensões entre política e altas cortes
- México: Uma reforma do Instituto Nacional Eleitoral (INE) defendida pelo governo de Andrés Manuel López Obrador e aprovada no Congresso em fevereiro gerou grandes protestos no país. Em maio, a Suprema Corte do país derrubou a primeira parte da reforma eleitoral, e poucos dias depois López Obrador anunciou que iria propor uma reforma constitucional para que juízes — incluindo ministros da corte — sejam eleitos pela população. O presidente tem tomado também iniciativas para reduzir o orçamento do Judiciário, afirmando que seus membros são “privilegiados”.
- El Salvador: Com maioria na Assembleia Legislativa, o partido do jovem (e polêmico) presidente Nayib Bukele conseguiu aprovar a destituição, em 2021, de cinco juízes da Câmara Constitucional da Corte Suprema de Justiça. A tensão entre a corte e o Executivo chegou a um ápice após os magistrados barrarem algumas medidas de prevenção à covid-19 defendidas pelo governo. Após a destituição, novos membros da corte foram nomeados.
- Israel: Argumentando que os tribunais estão intervindo demais nas decisões políticas, o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu anunciou no início do ano que iria propor uma ampla reforma judicial, o que logo despertou protestos em todo o país. Em julho, uma primeira parte da reforma — a qual limita o poder da Suprema Corte de rejeitar decisões do Executivo — foi aprovada no Parlamento. Entretanto, a própria Suprema Corte começou a julgar a validade da reforma, o que pode levar meses, ainda mais depois dos ataques do Hamas e da ofensiva de Israel em retaliação.
- Mali: Em julho de 2020, em um ambiente político e social conturbado, o então presidente de Mali Ibrahim Boubacar Keïta decidiu dissolver a Corte Constitucional do país e nomear novos membros, indicados por ele, pelo presidente da Assembleia Nacional e por um conselho jurídico. No mês seguinte, o próprio Keïta foi retirado do cargo por um golpe militar, que continua no poder até hoje — apesar de haver a promessa de que eleições ocorram em 2024. Segundo um relatório da organização americana Freedom House, o Judiciário do país está submetido ao Executivo e não tem independência. Além disso, por conta de ataques de milícias a juízes, muitos magistrados abandonaram seus cargos.
- Polônia: A partir de 2018, o partido PiS, que assumiu o poder do país em 2015, começou a instalar câmaras de correção para juízes, incluindo os da Suprema Corte. O governo argumentou que isso era necessário para conter a corrupção no Judiciário. Um tribunal da União Europeia (da qual o país é membro) já impôs multas pelas iniciativas do governo em relação ao judiciário — incluindo, além das câmaras de correção, a divulgação da afiliação política de juízes e a ligação deles a ONGs — e decidiu que elas violam as normas do bloco. Com eleições realizadas em 15 de outubro, o cenário indica que o PiS não conseguirá formar um governo de coalizão, o que pode alterar o curso dos esforços contra o Judiciário.
Israel: crise doméstica antes do ataque do Hamas
Após os ataques do Hamas a Israel em 7 de outubro, alguns analistas e políticos de oposição têm apontado que o contexto doméstico na véspera fragilizou a defesa do país.
Depois dos ataques do Hamas, o líder da oposição Yair Lapid disse que “o sistema de Israel colapsou porque ele se desconectou de seu DNA”.
“Israel sempre disse ao mundo: somos a única democracia no Oriente Médio, somos o país mais forte no Oriente Médio. Nós simplesmente esquecemos, mas essas duas coisas não estão desconectadas. Elas são causa e efeito.”
Tom Ginsburg endossa a avaliação. “A situação de Israel ilustra o que acontece quando populistas gastam muito tempo tentando minar as cortes. O governo israelense estava tão distraído com a tomada do poder que eles se provaram completamente incompetentes e despreparados para o ataque do Hamas”, diz o pesquisador americano.
“Muitos em Israel estão percebendo isso agora, e isso será uma mancha para Netanyahu por toda a história.”
Ginsburg afirma que, mesmo que ele seja um crítico da Suprema Corte israelense, ela é necessária.
“Eles [juízes da Suprema Corte israelense] fizeram realmente algumas decisões malucas. Eles se inseriram muito em muitos assuntos da política. Mas eu acho que Israel seria um país muito pior se eles não tivessem essa corte, porque eles têm um modelo de representação proporcional puro”, diz.
Ele se refere ao sistema eleitoral israelense, baseado no parlamentarismo e onde tem se mostrado quase impossível um único partido conquistar um número suficiente de assentos para formar governo sem alianças. Partidos pequenos normalmente são necessários para formar uma coalizão — e, para Ginsburg, isso faz com que minorias consigam usar o governo contra o direito de outras minorias.
“Me preocupo muito com os direitos das minorias, por exemplo a minoria árabe em Israel, que compõe cerca de 20% da população do país.”
‘Se há aposentadoria compulsória, limite de mandato é ruim’
Outra preocupação do especialista é com iniciativas como projetos do Congresso brasileiro para limitar mandatos de juízes do STF.
Ao defender essa mudança, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, afirmou em entrevista coletiva no dia 2 de outubro que a limitação é aplicada “em outros países do mundo e defendida em diversos segmentos, inclusive por ministros e ex-ministros do STF”.
Tom Ginsburg avalia que a regra brasileira atual é boa: não há limite de mandato, mas há aposentadoria compulsória. Por outro lado, ele critica o sistema americano, onde não há mandato e nem aposentadoria compulsória — o cargo é realmente vitalício.
“Não há fim para o trabalho deles [ministros dos EUA]. Isso seria bom se eles estivessem fazendo apenas coisas pequenas, e não tomando decisões substantivas sobre grandes temas para a vida dos americanos.”
“Se há aposentadoria compulsória, um limite de mandato é ruim. Um limite de idade é muito bom: a pessoa se dedica muito ao tribunal, mas depois tem que sair.”
“Já o limite de mandato em um país como o Brasil significará que os juízes estarão sempre pensando no que farão depois. Isso é muito perigoso em um tribunal, porque eles podem pensar: ‘Tem um empresário na minha frente e, quer saber, farei um belo favor a ele. Aí, depois que eu me aposentar, posso ir falar com ele’. Acho que é algo que leva à corrupção.”
O pesquisador cita também o risco de juízes vislumbrarem uma carreira política depois de um eventual mandato no STF.
“É extremamente perigoso quando os juízes estão fazendo o seu trabalho e pensando na esfera política. Isso põe em dúvida todo o sistema jurídico, como se fosse um sistema político. A legitimidade da lei vem de haver técnica, e não política”, conclui.