A terceira decapitação divulgada em vídeo nas últimas semanas pelo grupo extremista Estado Islâmico (EI), no sábado, trouxe mais uma vez à tona a pergunta: por que os militantes são tão cruéis?
Nos últimos meses, foram divulgados relatos e até vídeos de decapitações, crucificações, apedrejamentos, genocídios e sepultamento de vítimas vivas nas regiões que dominam no Iraque e na Síria.
Enquanto forças de quase 40 países se preparam para lançar uma ofensiva militar contra o EI, liderada pelos Estados Unidos, muitos tentam entender o que está por trás da selvageria dos jihadistas.
O professor Fawaz A. Gerges, da escola de Estudos Contemporâneos sobre Oriente Médio da universidade London School of Economics (LSE), explica neste artigo como a agressividade sem limites se tornou a principal arma do Estado Islâmico.
Para os militantes, a violência extrema é uma decisão consciente aterrorizar os inimigos, além de impressionar e cooptar seus jovens recrutas.
O Estado Islâmico é adepto da doutrina de guerra total sem limites e restrições – não há, por exemplo, arbitragem ou transigência quando se trata de solucionar disputas mesmo com rivais sunitas.
E, ao contrário da organização que lhe deu origem, a al-Qaeda, o EI não recorre à teologia para justificar os crimes.
A violência tem suas raízes no que pode ser identificado como “duas vertentes”, segundo a escala e a intensidade da brutalidade.
A primeira, liderada por discípulos de Sayyid Qutb – um islamita egípcio radical considerado o teórico supremo do jihadismo moderno -, tinha como alvo regimes árabes seculares pró-Ocidente ou o que chamavam de “inimigo próximo”, e, no geral, demonstrava moderação no uso da violência política.
Após o assassinato do presidente egípcio Anwar Sadat, em 1980, essa insurgência islamita se dissolveu até o final dos anos 90 ao custo de 2 mil vidas. Muitos dos militantes haviam seguido para o Afeganistão nos anos 80 para combater um novo inimigo global – a União Soviética.
‘Máquina mortífera’
A jihad (“guerra santa”) afegã contra os soviéticos deu origem à segunda vertente que, mais tarde, ganhou um alvo específico – o “inimigo distante”: os Estados Unidos, e em menor grau, a Europa.
Essa segunda onda foi encabeçada por um multimilionário saudita que virou revolucionário, Osama Bin Laden.
Bin Laden fez um grande esforço para racionalizar o ataque da al-Qaeda aos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001, chamando-o de “jihad defensiva”, ou retaliação contra a dominação americana das sociedades muçulmanas.
Consciente da importância de arrebanhar corações e mentes, Bin Laden enviou sua mensagem aos muçulmanos e até a americanos como uma espécie de auto-defesa, e não agressão.
Esse tipo de justificativa, no entanto, não tem relevância para o líder do EI, Abu Bakr al-Baghdadi, que não parece se importar com o que o mundo pensa da sanguinolência dos ataques do grupo.
Em contraste às duas primeiras vertentes, o EI professa ação violenta sem qualquer preceito teórico ou teológico e em nenhum momento demonstrou ter um repertório de ideias que sustente e nutra a sua base social. Trata-se de uma máquina de matar alimentada por sangue e armas.
Indo além da doutrina de Bin Laden de que “quando as pessoas veem um cavalo forte e um cavalo fraco, por natureza vão escolher o mais forte”, a vitória por meio do terrorismo de al-Baghdadi indica a amigos e inimigos que este é um “cavalo vencedor”.
“Saia do caminho ou você será esmagado; junte-se a nós e faça história” parece ser o lema do EI.
Evidências cada vez mais fortes mostram que, nos últimos meses, centenas senão milhares de antigos e obstinados inimigos do EI, como a Frente al-Nusra e a Frente Islâmica, responderam ao chamado de al-Baghdadi.
A propaganda sofisticada do EI mira jovens sunitas desiludidos e descontentes em todo o mundo porque o grupo é visto como uma vanguarda poderosa que oferece a vitória e a salvação.
Longe de abominarem a brutalidade do grupo, os jovens recrutas são atraídos pelas táticas de choque e pavor contra os inimigos do Islã.
Suas façanhas no campo de batalha – especialmente o controle de enormes partes do território na Síria e Iraque e o estabelecimento do califado – repercutem perto e longe da região. Nada é melhor do que o sucesso, e as vitórias militares recentes do EI têm resultado em um boom no recrutamento.
Homens muçulmanos que vivem em países ocidentais se juntam ao EI e outros grupos extremistas porque eles se sentem parte de uma missão maior – ressuscitar um tipo idealizado perdido de califado e ser parte de uma comunidade unida com uma identidade forte.
Inicialmente, muitos jovens de Londres, Berlim e Paris e de outros lugares migram para as terras da jihad para defender correligionários perseguidos, mas acabam nas garras do EI, praticando atos de extrema crueldade, como a decapitação de civis inocentes.
As origens do extremismo selvagem do EI podem ser traçadas até a al-Qaeda no Iraque, liderada por Abu Musab al-Zarqawi, que foi morto pelos americanos em 2006.
Tal como o grupo que lhe deu origem, o EI é alimentado pelo ódio aos xiitas e às minorias em geral, retratando-se como a ponta da lança de árabes sunitas na luta contra os regimes sectários de Bagdá e de Damasco.
Al-Zarqawi e al-Baghdadi veem xiitas como infiéis, uma quinta coluna no coração do Islã que deve ser exterminada.
Seguindo os passos de al-Zarqawi, al-Baghdadi ignora constantes apelos de seu mentor, Ayman al-Zawahiri, líder da al-Qaeda, para evitar a matança indiscriminada de xiiitas e, em vez disso, atacar os regimes xiitas e alauítas no Iraque e na Síria, respectivamente.
Estados Unidos
Ao explorar a brecha entre sunitas e xiitas no Iraque e o aprofundamento da guerra civil sectária na Síria, al-Baghdadi construiu uma poderosa base de apoio entre sunitas rebeldes e fundiu seu grupo nas comunidades locais.
Ele também reestruturou a sua rede militar e cooptou militares experientes do antigo Exército de Saddam Hussein que acabaram por transformar o EI em uma força de combate sectária profissional.
Até agora, o EI vem focando nos xiitas e não no “inimigo distante”. A luta contra os EUA e a Europa está distante e não é uma prioridade: é preciso, primeiro, aguardar a libertação em casa.
No auge de bombardeios israelenses de Gaza em agosto, militantes criticaram o EI nas redes sociais por matar muçulmanos enquanto não faziam nada para ajudar os palestinos.
O EI reagiu dizendo que a luta contra os xiitas têm prioridade sobre todo o resto.
Agora que os EUA e a Europa uniram forças contra o EI, o grupo vai usar todos os seus ativos em retaliação, decapitando mais reféns. Há também uma probabilidade crescente de que o grupo ataque alvos diplomáticos no Oriente Médio.
Embora possa querer encenar uma operação de grandes proporções no território americano ou europeu, restam dúvidas se o EI tem a capacidade de realizar ataques complexos como os de 11 de setembro de 2001.
Há alguns meses, em resposta à ebulição de seus seguidores, al-Baghdadi reconheceu que sua organização não estava preparada para atacar os americanos em casa.
Ele disse, porém, que desejava que os EUA fizessem uma ofensiva terrestre para que o EI pudesse se envolver diretamente com os americanos – e matá-los.
Fawaz A. Gerges ocupa a cadeira Emirates em Estudos Contemporâneos sobre Oriente Médio na universidade LSE, em Londres. Ele é autor de vários livros, incluindo ‘Journey of the Jihadist: Inside Muslim Militancy’ (‘Jornada de um Jihadista: Por dentro da Militância Muçulmana’, em tradução livre).