Gabriel García Márquez disse por várias vezes que uma das obrigações de um escritor era fazer com que os personagens de seus romances respirassem por conta própria.
Ao longo de sua carreira, o Prêmio Nobel de Literatura teve êxito nesse objetivo: não é apenas a narrativa e a descrição cativante que fizeram dele um grande autor, mas também sua capacidade de criar personagens memoráveis.
Morto aos 87 anos, o escritor será homenageado nesta segunda-feira no Palácio de Belas Artes, na Cidade do México.
A cerimônia conta a presença dos presidentes Enrique Peña Nieto, do México, e Juan Manuel Santos, da Colômbia. Em Aracataca, cidade natal de Gabo, o escritor também recebe homenagens.
Esperam-se discursos que falem da imortalidade de Gabo, que assim como alguns de seus personagens continuará povoando a imaginação de leitores mundo agora.
Relembre alguns dos nomes mais marcantes que protonizaram sua obra. E escute, na voz do próprio Gabo, um trecho de sua obra maior, Cem Anos de Solidão.
Aureliano Buendía
No livro Cheiro de Goiaba, García Márquez afirma que o coronel mítico é inspirado na figura militar e política do colombiano Rafael Uribe Uribe, que, como o herói literário, “perdeu todas as batalhas em que se envolveu”.
Mas Aureliano Buendía é talvez o personagem no qual Gabo mais colocou sua própria pele, história e alma.
É também o nome mais citado em seus outros romances: La Hojarasca, Ninguém Escreve ao Coronel, Má Hora: o Veneno da Madrugada e Crônica de uma morte anunciada.
O coronel Aureliano Buendía é quem sofre em maior proporção o rigor da sociedade: não pode expressar seus sentimentos de amor, nem a suas amantes ou aos seus filhos, e termina recluso em casa até a morte.
Quando chega a hora de Buendía partir, Gabriel García Márquez sente que algo dele ficou por ali, naquele momento. Como ele admitiu numa entrevista, foi o personagem mais difícil de matar ao escrever o romance: “Eu chorei por horas por este assassinato”.
Úrsula Iguarán
Macondo é, sem dúvida, o lugar imaginário mais belo da literatura em espanhol. E seu coração é Úrsula Iguarán . Ela fundou Macondo e sua morte, após a inundação dos “quatro anos, onze meses e dois dias”, dá início ao declínio da cidade. Curiosamente, García Márquez também morreu em uma Quinta-feira Santa, assim como Úrsula.
Úrsula é exuberante e generosa (adotou os 17 filhos naturais de Aureliano Buendía). É também justa, porém rigorosa e, acima de tudo, tem uma firmeza inabalável: é expulsa de sua própria casa com seus dois filhos, Rebecca e José Arcadio, quando se descobre que são casados, e destitui o prefeito da cidade a chicotadas diante de uma injustiça.
Seu caráter matriarcal, que servirá de apoio ao povoado por mais de 100 anos, é essencial para entender o espírito da obra de García Márquez, mas especialmente a sua opinião sobre as mulheres: nos livros do escritor colombiano elas têm poder, tomam decisões e, sobretudo, são cientes da realidade em torno delas. Já os homens passam o tempo perseguindo fantasias ou em guerras.
Quem espera 53 anos, 7 meses e 11 dias para estar com o amor da sua vida? Só Florentino Ariza poderia fazê-lo com tanta tenacidade. Filho do dono de uma empresa fluvial que navegava o rio Magdalena, ele vê Fermina Daza numa tarde depois de lhe entregar um telegrama e se apaixona por ela para sempre.
Mas para sempre é para sempre.
Florentino promete tudo: seu amor e virgindade. Apesar de não cumprir a promessa de castidade (são mais de 300 amantes), é a promessa de amor eterno que ele não hesita em afirmar, o que torna o “O Amor nos Tempos do Cólera” uma das melhores expressões literárias de amor e destino.
Suas palavras e coragem para aparecer diante da casa de Fermina Daza, poucas horas depois da morte de seu marido, são uma explosão incendiária, mas conclusiva, que nos deixa sem fôlego e surpreendidos diante de tamanha determinação.
O Coronel
Com a mesma persistência de Ariza, mas sem sua ilusão erótica, o personagem principal de Ninguém Escreve ao Coronel aguarda a chegada de uma pensão que sabemos que nunca chegará. Essa esperança, despojada da exuberância de Macondo de Cem Anos de Solidão e que caminha em uma atmosfera sufocante, eterniza a figura do coronel.
Escrito em Paris enquanto Gabo esperava resposta para retornar à Colômbia após uma missão jornalística, tornou-se a gênese literária de sua Macondo. O Coronel evidencia as primeiras características de seus outros habitantes: retraídos, solitários e em suas horas finais. Mas também retrata um aspecto comum de todo um país: a capacidade de resistência.
Nena Daconte
Quando Macondo foi varrida da face da terra, Gabriel García Márquez teve que recorrer a outras fontes de inspiração para continuar com sua literatura. Em Doze Contos Peregrinos, seu último livro de contos, surge uma mulher, muito longe da imagem bucólica de seu povo imaginário, moderna, educada e com calças: Nena Daconte.
No conto O Rastro do Teu Sangue na Neve, Gabo nos mostra uma mulher que comanda seu destino e que seria capaz de governar o planeta com sua inteligência e doçura.
A brevidade do conto torna essa personagem ainda mais poderosa. Nena Daconte não sobrevive até a metade da história, mas vive a sua agonia com dignidade incrível, que a torna uma personagem inesquecível no vasto legado literário do Nobel colombiano.