Esses aparelhos, que custaram R$ 13,9 milhões, foram distribuídos para os laboratórios centrais dos 26 Estados e do Distrito Federal — e ajudaram a acompanhar a evolução do coronavírus e o comportamento das diversas variantes do patógeno nas várias ondas de casos, hospitalizações e mortes.
Passada a fase mais grave da crise sanitária, especialistas discutem agora como aproveitar esse potencial dos sequenciadores genéticos em prol da saúde pública e da ciência brasileiras.
“Com a diminuição da demanda relacionada à covid-19, o uso dessas tecnologias de sequenciamento genético precisa ser muito bem pensado”, contextualiza Lygia da Veiga Pereira, professora titular de Genética da Universidade de São Paulo (USP).
“Antes de 2021, não tínhamos capacidade, infraestrutura, pessoal e logística para realização de testes moleculares no Sistema Único de Saúde (SUS)”, observa o médico Rodrigo Guindalini, consultor científico do Instituto Oncoguia, uma ONG voltada a pacientes com câncer e familiares.
“Agora que temos tudo instalado, essa é uma oportunidade que não podemos desperdiçar”, complementa ele.
“O desafio agora é como manter todo esse fluxo de trabalho funcionando de forma rápida e custo-efetiva”, acrescenta o virologista Anderson F. Brito, pesquisador científico do Instituto Todos pela Saúde (ITpS).
O debate sobre como aproveitar essas ferramentas em diferentes áreas se abre em algumas possibilidades: os sequenciadores podem seguir monitorando o comportamento de diferentes vírus, mas há propostas para utilizá-los na análise de alguns tipos de câncer ou na detecção de doenças raras.
Nesses casos, o diagnóstico adequado pode fazer toda a diferença para orientar estratégias preventivas ou definir o melhor tratamento.
Entenda a seguir como essas máquinas estão sendo utilizadas e quais são os planos para o uso delas no futuro.
Vigilância ampliada
Questionado pela BBC News Brasil sobre os tais sequenciadores genéticos, o Ministério da Saúde confirmou a compra de 27 aparelhos do tipo em 2021.
O Governo Federal arcou com 24 dessas máquinas, que custaram R$ 12,5 milhões.
As outras três foram obtidas “por meio de um organismo internacional”, e saíram por R$ 1,4 milhão.
“No total, foram gastos R$ 13,9 milhões”, detalhou o ministério em nota enviada à reportagem.
“Os sequenciadores foram destinados aos Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacen) das 27 unidades federativas que compõem a Rede SISLab e que apoiam a vigilância em saúde no Brasil.”
Esses laboratórios centrais são a referência de cada Estado no diagnóstico de doenças. É para esses locais que são enviadas amostras de pacientes com algum quadro suspeito, para o qual é necessário fazer exames específicos que ajudam a definir o causador daqueles incômodos.
A instalação das novas tecnologias genômicas exigiu uma série de adequações — como a reforma da infra-estrutura para abrigar os sequenciadores e o treinamento de profissionais para operá-los adequadamente.
“Ou seja, não estamos falando apenas da compra de aparelhos. Foi necessário organizar toda uma cadeia de processos, treinar equipes, disponibilizar insumos…”, lista Guindalini, que também trabalha na Oncologia D’Or.
Na visão do cientista, todo esse conhecimento adquirido ficou como uma espécie de “legado” da pandemia.
Mas como o Ministério da Saúde está usando — ou planeja usar — todo esse potencial genômico daqui em diante?
De acordo com a nota enviada para a BBC News Brasil, os sequenciadores passaram a ser utilizados “no estudo dos genomas de outros patógenos de interesse da saúde pública, como os dos vírus da dengue e da chikungunya”.
“Desde a implementação, foram gerados 15.601 genomas de Sars-Cov-2 [o coronavírus causador da covid-19], 557 genomas de vírus de dengue e 415 genomas de vírus chikungunya. Somente no ano de 2023, foram gerados 5.020 genomas, somando os quantitativos de Sars-Cov-2 e arbovírus (dengue e chikungunya)”, declarou o ministério em nota.
O sequenciamento dos vírus transmitidos pela picada do mosquito Aedes aegypti também faz parte de um projeto-piloto realizado nos Estados do Amazonas, Ceará, Goiás, Paraná, São Paulo e Minas Gerais.
O ministério também planeja a criação do Centro de Inteligência Genômica (Cigen), “que vai viabilizar o desenvolvimento de softwares de bioinformática para solucionar problemas biológicos de forma gratuita e independente, como a identificação de variantes de patógenos circulantes e de genes de resistência aos antimicrobianos, e a modelagem do comportamento do agente e da epidemia, entre outros”.
“O objetivo atual é aproveitar esse legado e aplicá-lo a outras doenças de interesse para saúde pública”, finaliza o texto.
Ampliação das possibilidades
Para Guindalini, os números de sequenciamentos informados pelo Ministério da Saúde — 5 mil genomas em 2023 — representam uma boa notícia, pois sinalizam que as máquinas não estão paradas.
“Mas é possível fazer muito mais que isso. Com esses 27 equipamentos em funcionamento, dá pra fazer milhares e milhares de sequenciamentos todos os meses”, avalia ele.
O oncogeneticista propõe que alguns desses aparelhos sejam usados em projetos-piloto para o sequenciamento do câncer no SUS.
“Poderíamos implementar serviços de aconselhamento genético para o câncer, em que fossem selecionados 10 ou 15 genes que mudam completamente a conduta terapêutica e permitem estratégias de prevenção extremamente eficazes”, defende ele.
“Já conhecemos algumas mutações que mudam a vida de famílias inteiras e diminuem o risco de desenvolver o câncer em mais de 80%”, complementa o médico.
É o caso, por exemplo, das alterações genéticas que aparecem nos genes BRCA1 ou 2 e estão relacionados ao desenvolvimento de tumores nas mamas e nos ovários.
Ao detectar essas mutações em uma mulher que ainda não desenvolveu nenhum problema de saúde, é possível fazer um acompanhamento mais criterioso, com o auxílio de exames periódicos, ou até realizar cirurgias profiláticas dos tecidos em que as células cancerosas poderiam crescer no futuro.
Essas estratégias ajudam a reduzir a probabilidade do aparecimento de um tumor desses — ou ao menos permitem detectar a doença nos primeiros estágios, quando a chance de cura é bem mais alta.
“Não é preciso inventar a roda aqui: esse é um modelo que já está em operação em outros países e dificilmente daria errado no Brasil”, aposta Guindalini.
Pereira, que também é líder da gen-t, uma startup de biotecnologia que mapeia dados genômicos e trabalha com Medicina de precisão, sugere que os sequenciadores ainda podem auxiliar no diagnóstico de doenças raras.
“Nós conhecemos muito bem as bases genéticas de algumas dessas enfermidades”, diz ela.
“Individualmente, essas condições podem até ser consideradas raras. Mas quando você soma várias delas, os números são significativos.”
A especialista explica que o diagnóstico de algumas dessas doenças têm um impacto direto na qualidade de vida e na saúde dos pacientes.
“Nesses casos, o diagnóstico genético esclarece o que está acontecendo ali”, diz ela.
“E muitas dessas pessoas passam por uma jornada de diagnóstico longuíssima, de médico em médico, e só o sequenciamento dá uma resposta definitiva”, observa a especialista.
Pereira também entende que essas tecnologias podem ajudar a entender as particularidades do genoma dos brasileiros.
“No Brasil, temos um desafio extra, que é a mistura de DNA indígena, europeu e africano”, aponta ela.
Para ter ideia, alterações no TP53 chegam a ser a terceira causa mais comum de câncer de mama hereditário no país, atrás apenas das mutações no BRCA1 e 2.
Em outros países, no entanto, é muito mais raro encontrar algo alterado no gene TP53.
Vírus novos e velhos
Brito avalia que aproveitar esses sequenciadores para fazer a vigilância genômica de diferentes vírus é algo estratégico para o país.
“Recentemente, alguns Estados brasileiros decretaram emergência de saúde pelo aumento nas internações de crianças infectadas pelo vírus sincicial respiratório”, exemplifica ele.
Esse patógeno está entre os causadores mais frequentes do resfriado comum — que pode gerar quadros mais graves no público infantil.
“Mas não sabemos exatamente se o vírus responsável por este surto recente tinha algo de especial ou quais são as variantes em circulação, simplesmente porque esses dados não existem”, diz Brito.
Para o virologista, é possível usar os sequenciadores para fazer estudos comparativos. Isso permitiria conhecer melhor este e outros vírus, o que abre possibilidades de criar uma estratégia para prevenir novas ondas de casos, internações e mortes no futuro.
Brito lembra de outro episódio recente em que uma vigilância genômica teria feito toda a diferença: a epidemia do vírus zika, que estourou a partir de 2015 no Brasil e levou a casos de microcefalia, em que bebês nasciam com a cabeça num tamanho menor que o esperado.
“Por cerca de um ano, os casos de zika foram diagnosticados como se fossem dengue no país por causa da similaridade de sintomas. Ninguém sabia que este patógeno circulava por aqui”, lembra ele.
“Foi necessário que alguém estranhasse o aumento incomum nos casos de microcefalia para suspeitar de outra coisa além da dengue e fazer o sequenciamento do vírus para descobrir o que ele tinha de diferente”, complementa.
Rapidez primordial
Brito destaca que, para criar uma rede de vigilância genômica com aplicações práticas, é necessário que ela esteja muito bem organizada e disponibilize resultados com agilidade.
Durante a pandemia, o virologista publicou com outros especialistas um estudo que calculou o tempo entre a coleta de amostras de um paciente com covid-19 e a publicação do sequenciamento em bancos de dados. Na média, esse processo levava em torno de 45 dias na América do Sul.
“Isso é uma eternidade. Quando a informação fica disponível, ela não suscita mais nenhuma ação prática do ponto de vista da saúde pública”, lamenta ele.
Em outras palavras, todo o processo — que inclui a coleta das amostras, o envio delas aos laboratórios, o sequenciamento genético, a produção dos laudos e a divulgação dos resultados — precisa estar muito bem coordenado no país todo.
Isso permitiria ter um retrato praticamente em tempo real sobre a circulação de determinados patógenos e o surgimento das variantes — e serviria de base para que os representantes do Ministério da Saúde e das secretarias estaduais e municipais tomassem ações para conter a transmissão ou lidar com o aumento de casos de uma doença em determinada região do país.
Um exemplo prático: a vigilância do vírus influenza, o causador da gripe. Sequenciar amostras de pacientes acometidos por essa infecção permitiria saber em detalhes as cepas do patógeno que estão circulando. Essa informação ajudaria a definir a composição das vacinas ou até o envio de equipamentos, profissionais e recursos para as áreas mais afetadas.
“Mas, de novo, esse processo precisa ser célere. Ele jamais pode demorar mais de um mês para que uma amostra seja convertida em dados genômicos”, insiste Brito.
“Os investimentos, portanto, não devem ser centrados apenas nos sequenciadores genéticos. É preciso pensar em todos os elementos da cadeia, como profissionais treinados e experientes.”
“Dessa forma, é possível reagir rápido para lidar com potenciais riscos à saúde pública”, finaliza o virologista.
Pereira aponta que, além de todos os desafios práticos, é preciso pensar a vigilância genética como uma fonte de conhecimento que beneficia diretamente a saúde pública.
“Só assim esses esforços serão perpetuados, de modo que seja feito o melhor uso dos investimentos já realizados e aqueles que ainda vão ser feitos”, diz.
“Para isso, é necessário que esses programas sejam um projeto de Estado, e não uma iniciativa de governos”, conclui ela.